Postagens populares

sábado, 15 de agosto de 2015

Uma crise, duas faces








14/08/2015 ­ 07:00
Uma crise, duas faces

Abrucio: desconexão entre os organizadores e as demandas da maior parte da população, além da incapacidade de articulação política, retiram efetividade a protestos



A crise no Brasil é dupla. Há uma camada conjuntural, que se manifesta nos indicadores econômicos preocupantes de 2015. Por baixo, uma crise ainda maior, que é estrutural e envolve a necessidade de reformas administrativas, para fazer frente ao compromisso social consagrado pela Constituição de 1988. A avaliação é do cientista político Fernando Abrucio, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. 



Segundo Abrucio, os meios empresarial e político perceberam, nas últimas semanas, que a crise estrutural é a mais grave. Desde então, preferem resolver o problema conjuntural através do pacto de governabilidade, com a chamada "agenda Brasil" que resultou de reunião do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, com o presidente do Senado, Renan Calheiros. 

Como resultado, diz Abrucio, a perspectiva de impeachment da presidente Dilma Rousseff perdeu força e o maior interessado em prosseguir insuflando a ideia de sua derrubada é o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. 

Apoiando-se em pesquisas de opinião, Abrucio afirma que, hoje, "o nome da crise não é Dilma Rousseff, mas Eduardo Cunha". 

Ainda assim, manifestações contra a presidente estão marcadas para domingo. Para o cientista político, a perceptível desconexão entre os organizadores da manifestação e as demandas da maior parte da população - apesar do descontentamento generalizado com a presidente -, além da incapacidade de articulação política, retiram efetividade aos protestos. Uma consequência é a perpetuação de um clima tenso no país, sobretudo nas classes médias do Sudeste. As manifestações da esquerda, marcadas para o dia 20, só ganhariam corpo, na avaliação de Abrucio, caso o processo de impeachment fosse realmente levado adiante. 

Com o atual cenário, de profunda incerteza, Abrucio considera que a alternativa de aceitação mais ampla talvez seja um pacto de governabilidade que faça dos três anos de mandato que restam a Dilma Rousseff um governo de transição, como foi o de Itamar Franco. 


Valor: O sistema político parece ter se afastado da perspectiva do impeachment, com o acordo costurado entre Joaquim Levy e Renan Calheiros. O acordo traz calma ao cenário? 

Fernando Abrucio: O Brasil vive duas crises. Uma é a conjuntural e tem a ver com a governabilidade do sistema, que está em um cenário de completa incerteza. Esse cenário contribui para afastar o impeachment. Isso tem a ver com a operação Lava-Jato, com a base enfraquecida do governo no Congresso, com a crise econômica, com o cenário internacional e também com a crise hídrica, que teve um efeito brutal nas contas públicas, não afetou só São Paulo. É a tempestade perfeita, em que, de um lado, não se consegue avançar para organizar a governabilidade e, de outro, não se consegue organizar um desfecho que envolva a retirada da presidente. O grau de incerteza é tal que nenhuma das peças consegue se mexer para a frente, só para o lado. Quem tenta jogar para a frente é obrigado a retroceder, como Aécio Neves e agora Eduardo Cunha. 



Valor: E a outra crise? 

Abrucio: Todos parecem achar que o cenário conjuntural é o mais grave. Não é. Desde a semana passada, começou a tomar corpo, nos meios empresariais e políticos, a percepção de que a crise maior é estrutural. Nos últimos 27 anos, o Brasil conduziu uma série de agendas bem-sucedidas. A redemocratização, a estabilidade econômica, a inclusão social. Sobretudo os governos de Fernando Henrique e Lula tiveram, comparando com o resto da história do Brasil, um sucesso muito grande. O Brasil nunca foi democrático como é hoje, nunca incluiu tantas pessoas como agora, fez uma reorganização da sua base econômica muito forte, a despeito da crise. A maior parte dos países comparáveis não tem isso. Só que outras agendas foram nascendo e foram sendo postergadas. É a agenda da qualidade da gestão pública, da produtividade da economia brasileira, da inserção internacional do país. É a agenda de como garantir direitos sociais que não sejam meramente direitos corporativos. Mesmo que tirem Dilma, a crise estrutural vai estar presente. Nas duas últimas semanas, o empresariado começou a se dar conta disso. 

"Desde a semana passada, começou a tomar corpo a percepção de que a crise mais grave é estrutural, e não conjuntural" 


Valor: Então, o pacto reflete os interesses da classe empresarial? 

Abrucio: As lideranças econômicas veem o pacto como possível. O PMDB sai reforçado, talvez se incluam grupos de esquerda. O ato definidor ocorreu na segunda-feira, quando Renan e Levy se juntaram. Eduardo Cunha foi colocado numa sinuca de bico. Virou um consenso que ele está atacando não o governo, mas o país. Nas pesquisas qualitativas que faço, isso já está aparecendo na sua imagem junto à população. Hoje, o nome da crise é Eduardo Cunha, e não Dilma Rousseff. 


Valor: O novo acordo pode arrefecer as manifestações marcadas para domingo? 

Abrucio: As manifestações exprimem o grande cansaço com a corrupção e a percepção da crise econômica, já que a situação piorou nos últimos seis meses e vai piorar mais antes de melhorar. Também há uma rejeição ao governo em parcelas da classe média, sobretudo no Sudeste. Mas chegaram a uma sinuca de bico, porque apostaram tudo no impeachment, que se torna cada vez mais improvável, já que vários setores econômicos e sociais influentes preferem uma solução razoável, não querem romper com o jogo do voto, sabendo dos apoios que a coligação petista ainda tem e sabendo, sobretudo, que mais importante é começar a atacar o mais rápido possível a crise estrutural. As manifestações começam a não ter onde desaguar. Fica uma tensão no ambiente, mas ela vai ser menor do que em março. 

Valor: As manifestações são representativas da atmosfera política do país? 

Abrucio: Há uma grande massa da população que está descontente com o governo Dilma, mas não está associada às manifestações. Esses movimentos têm baixíssima capacidade de chegar ao que interessa aos mais pobres da população. Não conseguem falar da pauta dos mais pobres, que é transporte público, saúde, educação, é a vida na periferia, a violência policial. E esses movimentos diversas vezes demonstram sentimentos preconceituosos. 

Apoiaram coisas muito distantes da agenda dos mais pobres. Na última manifestação, em abril, disseram que iam chegar nas periferias. Chegaram? Não chegam. É preciso separar a enorme insatisfação com o governo Dilma, que acho que não vai mudar muito nos próximos meses, e as manifestações. Elas não foram capazes de captar a insatisfação. Também não souberam organizar-se no sistema político. Até agora, apostaram no Eduardo Cunha. Ele, que daqui a pouco vai ser colocado na mídia como réu. Não souberam se articular. Poderiam ter se articulado no PSDB, mas não perceberam que o PSDB está dividido. 

Valor: Podemos ficar três anos e meio com um governo enfraquecido e amarrado? 

Abrucio: A melhor das hipóteses para Dilma é ser um governo de transição para 2018. Não é pouca coisa para o país, nem para ela, se souber ter estatura política para isso. O governo de Itamar [Franco] entrou na história como um bom governo de transição. Se não fosse um governo de transição, seria um desastre. Dilma é o Itamar da vez. Se conseguir uma saída no Congresso com a parcela responsável do PMDB, ela consegue ser um bom governo de transição. 

Valor: Qual seria o peso das manifestações à esquerda, programadas para o dia 20? 

Abrucio: Têm um sentido de ameaça: olha o que podemos fazer. Mas se começasse um processo de impeachment, essas manifestações cresceriam. Hoje, muita gente as vê como mero puxa-saquismo. Mas, com um processo de impeachment, talvez comecem a olhar de outro modo. Assim como as outras manifestações, quando se centram na corrupção e no fracasso econômico do governo Dilma, angariam apoio. Quando dizem "menos Estado, mais mercado", não têm ninguém.
Com o acordo entre Calheiros e Levy (no centro), a perspectiva de impeachment da presidente Dilma Rousseff perdeu força e agora é ideia que só interessa a Eduardo Cunha, diz Abrucio (à direita, o ministro Nelson Barbosa, do Planejamento) 

Valor: Em que medida podemos dizer que o governo está pagando por fazer uma política econômica oposta ao prometido na eleição? 

Abrucio: Este último ano produziu duas grandes mentiras. A primeira é a campanha de Dilma. Já se sabia na equipe econômica o que seria feito. Medidas de ajuste tinham sido preparadas ainda em 2013 e Dilma não deixou aplicar. Vinculadas ao seguro-desemprego, à pensão, essas que estão sendo feitas por Levy e já tinham sido propostas por Mantega. Já se sabia o tamanho da crise e Dilma mentiu. Fez, também, uma campanha mentirosa sobre Marina Silva. O famoso comercial sobre os banqueiros é digno de [Joseph] Goebbels [ministro da Propaganda nazista]. Algo não muito bom para a democracia. A segunda mentira é a oposição dizendo que, se ganhasse a eleição, faria tudo diferente. Faria a mesmíssima coisa. É por isso que a crise estrutural é maior que a conjuntural. Os maiores partidos do país não se deram conta de que o Brasil vai ter que passar por uma nova agenda de reformas, para ajustar nossas instituições à necessidade de produzir mais crescimento e qualidade de políticas públicas. Se não, o desequilíbrio vai ocorrer, porque não vamos ter nem crescimento nem distribuição. Que é, aliás, o que está ocorrendo este ano. 


Valor: Falando em reformas, podemos atribuir o crescente aperto à corrupção no Estado ao fortalecimento da atuação do Judiciário, do Ministério Público, à Polícia Federal? 

Abrucio: Houve um avanço institucional muito grande no sistema de Justiça e de controle. É inegável. Não que não errem. Tem erros nesse processo, algumas coisas ligadas ao direito de defesa, uma certa pressa na produção de provas. A despeito disso, tivemos muito mais avanços que retrocessos. Parte da nossa crise estrutural tem a ver com isso, porque vai além da dicotomia entre produção e distribuição. Na própria produção há algo que é vinculado ao oferecimento de serviços públicos, educação, saúde, transporte, Justiça. A população percebeu isso. Essa é a crise estrutural. Temos que reformular nosso aparato legal e administrativo para dar conta disso.


Valor: A sociedade está um passo à frente das suas lideranças?

Abrucio: Em algumas coisas, sim. À frente das atuais lideranças políticas, que ainda estão com o discurso de uma era anterior, uma era de grande transformação iniciada em 1994 com o Plano Real, continuada e aperfeiçoada com o lulismo, e que não é mais suficiente para o que precisamos.


Valor: A crise estrutural seria também uma crise de liderança?

Abrucio: Temos uma crise de liderança, que está ligada a duas coisas. Primeiro, uma questão geracional. A elite política que fez o sucesso do país está acabando: Ulysses Guimarães, [Franco] Montoro, Lula, Fernando Henrique, Mario Covas. Todas as lideranças que produziram um período de 30 anos que é um dos melhores da história do país. Boa parte dessas lideranças criou barreiras de entrada que mantiveram os mais novos fora. Segundo: os partidos estão muito distantes da sociedade. Quando se produziu essa geração, entre as décadas de 70 e 90, os partidos estavam mais próximos. Isso me preocupa muito, porque, para começar uma nova agenda de reformas, um pacto de governabilidade razoável, inclusive para transformar mais radicalmente algumas estruturas da sociedade brasileira, vai ser preciso ter mais lideranças novas.


Valor: As lideranças poderiam vir das ruas?

Abrucio: Esses movimentos que vão para as ruas, em vez de produzir lideranças que entram nos partidos, produz lideranças contra os partidos. O que me dá a impressão de que estão mais preocupados com o status quo do que com a mudança. Esse status quo que foi pressionado pelo lulismo com a inclusão social. Essas pessoas não estão pensando além disso. Poderiam estar produzindo uma agenda mais ampla, mas não conseguem sair de um ou dois pontos. Têm uma visão muito estreita do Brasil. O Brasil vai muito além da crise do lulo-petismo. Se não tivermos consciência disso, a gente acha que, substituindo Dilma, no dia seguinte vai estar melhor. Não é assim.


Valor: O PSDB não está ocupando o espaço que se espera da oposição. O bipartidarismo aparente das últimas décadas está ameaçado?

Abrucio: Embora esteja cometendo uma série de erros, o PSDB tem uma perspectiva eleitoral boa em 2018. A não ser que continue acreditando nas apostas aventureiras de Aécio. Se não, o PSDB tem grande chance de ganhar a eleição em 2018. Não nego que há chance de um aventureiro ou um candidato do PMDB ganharem a eleição. Mas, se não cair na aventura, o PSDB tem boas chances. O eleitor não vai aceitar um discurso à direita na eleição presidencial, mas pode aceitar um discurso mais de centro, ao estilo de [Geraldo] Alckmin. Ele não vai propor acabar com o Estado de bem-estar social. A não ser que a crise piore muito. Não por acaso, para Alckmin e talvez [José] Serra, interessa menos um sinal de crise muito forte, porque aí eles têm chance de ganhar a eleição em 2018.


Valor: Já o PT está em crise profunda...

Abrucio: Está e não tem chances para 2018, mas tem chance de se reconstruir, nem que seja com outro nome, mais adiante. Por uma razão simples: o Brasil é um país muito desigual, com um grande espaço para a agenda de centro-esquerda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário