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quinta-feira, 26 de junho de 2014

A Alemanha e as causas da Primeira Guerra Mundial: Foi ela a única responsável?

  Até a conclusão do processo de Unificação Alemã em 1871, os diversos Estados alemães espalhados pela Europa Central ocupavam uma posição relativamente marginal nos assuntos políticos europeus. Com a notável exceção da Prússia, que desempenhava um papel significante no continente já em fins do século 18, os Estados alemães permaneceram nas margens do jogo político europeu até a segunda metade do século 19. A Prússia conquistara o status de grande potência após derrotar o Império Habsburgo e, em 1815, apresentava-se no Congresso de Viena como um dos Quatro Grandes, ao lado da Áustria, Grã-Bretanha e Rússia – A França retornaria à elite europeia alguns anos mais tarde. Na mesma época, o nacionalismo alemão começava a ganhar força, dando origem a diversos movimentos pela Unificação alemã. Contudo, tal unificação se tornaria uma possibilidade real apenas após a Guerra Austro-Prussiana de 1866, quando a derrotada Áustria foi permanentemente excluída dos assuntos alemães e deixou o caminho livre para a Prússia levar adiante o processo de unificação sob sua liderança.
  Em 1870, tem início o conflito entre a Prússia e o Segundo Império Francês de Napoleão III, do qual o primeiro sai vitorioso no ano seguinte, completando, assim, a Unificação Alemã. Desse modo, nasce o Império Alemão (II Reich), já como potência hegemônica no continente, enquanto a Grã-Bretanha mantém o domínio dos mares e condição de maior potência imperial. Apesar de a Grã-Bretanha ter mantido sua posição na arquitetura de poder europeia, os britânicos viam a ascensão alemã com bastante preocupação, uma vez que ela ameaçava derrubar o equilíbrio de poder estabelecido em 1815. Desde o Congresso de Viena a peça chave da estratégia britânica na Europa havia sido a prevenção do surgimento de uma potência dominante no continente[1], e a ascensão da Alemanha como claro hegemon continental colocava em xeque o sistema defendido por Londres. A quebra do equilíbrio de poder, por seu turno, deu origem a um período de desconfiança generalizada que terminou por levar a uma corrida armamentista entre as grandes potências europeias. Assim, as últimas décadas do século 19 na Europa foram marcadas por um clima de desconfiança e intensa militarização, embora a hábil diplomacia de Bismarck lograsse evitar que o pior acontecesse.
  A situação mundial no início do século 20 tinha como principal traço o avanço do imperialismo. Os Estados Unidos expandiam pelo Caribe e Pacífico, controlando Cuba e as Filipinas, respectivamente; o Japão anexara Taiwan (Formosa) em 1895 e cada vez mais aumentava sua presença na península coreana; a Ásia e a África encontravam-se em vias de dominação pelas potências europeias. No caso da África, é notável o fato de que apenas a Etiópia e a Libéria continuavam independentes no início do século[2]. Até certo ponto, o crescimento da rivalidade anglo-germânica a partir da década de 1880 deveu-se ao aumento das pretensões hegemônicas da Alemanha. Se os britânicos já tinham motivos para se preocupar com a unificação dos Estados alemães, uma Alemanha unificada com ambições expansionistas agravava a questão ainda mais, sobretudo porque, no campo econômico, ela já começava a superar a grande potência marítima[3].
  Mas se uma guerra generalizada parecia inevitável após a Unificação Alemã, ela fora evitada graças em grande parte ao eficaz estadista prussiano Otto Von Bismarck. O chanceler habilidosamente perseguiu uma política exterior que obteve êxito em seu objetivo de evitar uma guerra europeia: fundou a Liga dos Três Imperadores juntamente com a Áustria e a Rússia, já em 1872; Assinou o Tratado de Resseguro com a Rússia, em 1887; formou uma aliança defensiva com o Império Austríaco em 1889, à qual aderiu a Itália em 1892. Tais medidas foram tomadas ao mesmo tempo em que se evitou alienar a Grã-Bretanha ao defender continuamente a manutenção do status quo, o que, na prática, significava que a Alemanha não desafiaria a posição britânica na Europa e no mundo. Simultaneamente, Bismarck se opôs a qualquer envolvimento alemão nos Bálcãs, onde o crescente nacionalismo eslavo, sobrepostos interesses das grandes potências e desintegração do Império Otomano faziam da região o ‘barril de pólvora’ da
Europa. Deste modo, Bismarck logrou assegurar a paz entre a Alemanha e todas as potências europeias ao mesmo tempo em que isolou a França, principal inimigo em potencial da Alemanha, diminuindo, assim, a possibilidade de um conflito, visto que as chances de os franceses agirem sozinhos eram remotas. Todavia, a demissão de Bismarck em 1890 tornou incerto o futuro das relações europeias, a começar pela recusa do novo governo em renovar o Tratado de Resseguro com a Rússia, cuja oportunidade não foi ignorada pela França, que formou uma aliança militar com aquela já em 1893.
  Mas seria realmente correto atribuir unicamente à Alemanha a responsabilidade pelo início da Primeira Guerra Mundial? A princípio, essa hipótese parece razoável, afinal, os sucessores de Bismarck mostraram-se altamente incompetentes e o próprio Kaiser buscou uma política externa bastante questionável após a demissão do chanceler. Parece evidente que a política externa alemã pós-1890 contribuiu consideravelmente para que a Grande Guerra estourasse em 1914, ainda mais quando se leva em conta que Berlim tomou uma posição cada vez mais intransigente e agressiva em relação a outras potências como França, Grã-Bretanha e Rússia, ao mesmo tempo em que passou a se envolver ativamente na Questão Balcânica[4]. Entretanto, considerando que a situação geopolítica europeia nos primeiros anos do século 20 era demasiadamente complexa e que havia inúmeros interesses em disputa, parece também um tanto quanto simplista atribuir toda a culpa à Alemanha e à sua política externa. Existe uma série de fatores que precisa ser levada em conta ao se analisar a geopolítica da Europa durante os anos que antecederam a guerra em 1914.
  Uma vez potência dominante no sudeste europeu e no Mediterrâneo oriental, o Império Otomano via-se em franco declínio já na segunda metade do século 19, o que criava um vazio de poder que as potências europeias desejavam preencher. Nesse contexto, Áustria e Rússia eram as partes mais interessadas, mas França, Grã-Bretanha e Itália também possuíam interesses substanciais. Como mencionado acima, durante a Era Bismarck a Alemanha mantivera-se fora do jogo político nos Bálcãs, já que o chanceler reconhecia o perigo e a futilidade de um possível envolvimento alemão na problemática região. Após 1890, contudo, a Alemanha passou a desempenhar um papel cada vez maior nas questões balcânicas, ao passo que o nacionalismo eslavo crescia rapidamente entre as populações sob domínio otomano. A tensão e a instabilidade política da região eram tão grandes que ela mereceu a alcunha de ‘barril de pólvoras’ da Europa, um título pertinente, como a história se encarregaria de mostrar.
  O estado de coisas nos Bálcãs pioraria ainda mais em 1908, quando a Áustria anexou oficialmente a Bósnia e Herzegóvina como parte da intensificação de sua política expansionista na região. Esta, por sua vez, foi recebida com apoio e simpatia em Berlim[5]. O declínio do Império Otomano se tornaria ainda mais evidente em 1912, quando, incentivados pela Rússia, o grupo de nações formado por Bulgária, Croácia, Grécia e Sérvia atacou a potência decadente e expulsou os otomanos de quase todo o sudeste da Europa. A Sérvia, tendo saído do conflito fortalecida, passou a ser vista pela Áustria como principal obstáculo a suas pretensões nos Bálcãs. Por seu turno, a Sérvia contava com o apoio da Rússia, que havia se aliado à França e Grã-Bretanha. Com a anexação formal da Bósnia pela Áustria, o sentimento anti-austríaco se acentuou entre os eslavos da região, que contavam com o apoio de Belgrado – que passara a financiar atividades anti-austríacas na Bósnia[6]. Destarte, em meio a diversos interesses conflitantes entre as grandes potências, uma ampla rede de alianças e de tratados de defesa mútua, crescente nacionalismo eslavo e intensa corrida armamentista, o cenário estava pronto para o barril de pólvoras da Europa explodir.
  Mas até que ponto a Alemanha foi responsável pelo início do conflito? É fato amplamente conhecido que o acontecimento imediato que desencadeou as hostilidades foi o assassinato do arquiduque austríaco, Franz Ferdinand (Francisco Ferdinando), por um nacionalista sérvio em Sarajevo, capital da Bósnia. Tal assassinato levou a Europa a uma profunda crise diplomática conhecida como Crise de Julho, ainda que, ironicamente, Viena visse no episódio um perfeito pretexto para atacar a Sérvia e destruir sua capacidade de resistir a expansão austríaca nos Bálcãs[7]. Nesse ponto, não seria exagero atribuir à Áustria alguma parcela de responsabilidade pelo início da guerra, já que ela agiu de forma temerária e não buscou uma solução pacífica para o problema, agindo com intransigência e dando preferência a uma solução militar. Não obstante, também é verdade que por trás dessa vontade austríaca de tirar proveito da situação para avançar seus interesses regionais estava a certeza do apoio alemão, manifestado inúmeras vezes pelo governo de Berlim. A Áustria sozinha seria incapaz de derrotar a Sérvia e sua aliada Rússia em um eventual conflito, e tal fato era de conhecimento de todos, inclusive da própria Áustria. Se Viena deu preferência para uma opção militar do início ao fim da crise, era porque contava com o total apoio da Alemanha. Por essa óptica, não restam dúvidas de que a Alemanha teve um papel fundamental do desenrolar dos acontecimentos que levaram ao início da guerra. Além disso, o fato de a ideia de um ataque preventivo ter sido tão popular na Alemanha aponta para a direção de que não só Berlim encorajou Viena a lançar mão às armas como também pretendia avançar seus próprios interesses contra a Rússia pela força[8].
  De acordo com seus planos, o governo austríaco apresentou um ultimato à Sérvia com exigências tão severas que levariam Belgrado a não acatá-lo. Para a surpresa dos austríacos, o governo sérvio aceitou todas as condições contidas no ultimato com exceção de uma que daria livre acesso e liberdade de ação à polícia austríaca em território sérvio[9]. Porém, não fazia diferença que apenas uma de uma série de condições fosse rejeitada, o que importava era que ela fosse rejeitada, dando, assim, o desejado pretexto de lançar uma invasão militar à Sérvia. Esse apoio incondicional alemão a uma ação militar austríaca é a principal razão apontada para que a Alemanha seja usualmente considerada a principal responsável pela Grande Guerra. Contudo, ainda que seja inegável que Berlim tenha exercido um papel central no desencadeamento da guerra, e igualmente inegável que estava na posição de evitar que a Áustria declarasse guerra à Sérvia, é um equívoco atribuir a responsabilidade pelo conflito somente à Alemanha, como fez o Tratado de Versalhes.
   Como vimos, o cenário político europeu no início do século 20 estava longe de ser estável e todas as grandes potências viam um conflito militar de forma mais ou menos favorável, uma vez que o entendiam como um obstáculo inevitável na busca de seus respectivos interesses. A Grã-Bretanha desejava conter o espetacular crescimento econômico e militar alemão, a França nunca havia esquecido a humilhante derrota de 1871 e a questão da Alsácia- Lorena se tornara uma obsessão nacional, enquanto a Rússia possuía interesses primordiais nos Bálcãs e ansiava por ver a região livre da influência e presença austríacas, tendo acelerado sua militarização a partir de 1912 e declarado apoio incondicional à Sérvia durante a Crise de Julho. No caso da Rússia, ao contrário do que geralmente se pensa, o país estava pronto para a guerra em 1914 como resultado de anos de militarização[10] e, assim como as principais potências europeias, não era desprovida de interesses no que diz respeito a uma possível guerra.

 Conclusão

 A Primeira Guerra Mundial não deve ser vista como um único, isolado evento, mas como a culminação de um longo processo iniciado em 1871. Com a Unificação Alemã, o equilíbrio de poder que se tornara o pilar da ordem europeia tornou-se por demais frágil com a ascensão de uma potência continental hegemônica. Ao mesmo tempo, criou-se um forte sentimento anti-alemão entre os franceses, que passaram a ter na vingança contra a Alemanha uma importante política de Estado, enquanto os britânicos temiam um possível desafio à sua predominância por parte dos alemães. Tais tensões e desconfianças foram contornadas, ainda que temporariamente, pela habilidade do estadista Bismarck. Sua demissão do cargo de chanceler, no entanto, deixou o caminho livre para políticos menos hábeis e mais aventureiros, o que levou a Alemanha a construir sua própria agenda imperialista e a desafiar a supremacia naval britânica. Quando o arquiduque austríaco foi assassinado em 1914, o cenário já estava mais do que pronto para um conflito militar generalizado entre as grandes potências europeias.
  Talvez a corrente historiográfica majoritária culpe a Alemanha pelo início do conflito justamente pelo fato de ela tê-lo buscado, tanto antes quanto depois da morte de Franz Ferdinand. Como única potência com o poder e a influência de impedir que a Áustria atacasse a Sérvia, a Alemanha terminou por ser inteiramente responsabilizada pela guerra, enquanto a própria Áustria, estranhamente, foi isentada de tal culpabilidade. Parece mais correto e objetivo enxergar a Primeira Guerra Mundial como o resultado de uma série de eventos históricos, políticos, sociais, econômicos e diplomáticos que por fim tornaram a guerra inevitável, ainda que nenhuma das grandes potências acreditasse que ela tomaria proporções continentais e globais. Tendo a Primeira Guerra Mundial ocorrido em um cenário geopolítico bastante complexo que se desenvolvia há mais de quatro décadas, não há como atribuir somente à Alemanha a responsabilidade por ela, ainda que sua parcela seja consideravelmente grande. Não há como responsabilizar apenas um país por um conflito que foi o resultado de um processo histórico moldado ao longo de décadas.
  


REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

CIMBALA, Stephen, J, Military persuasion: deterrence and provocation in crisis and war. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 1994

COPELAND, David, C. The origins of major war. Ithaca: Cornell University Press, 2000

EVANS, Richard, J. Rereading German history: from unification to reunification, 1800 – 1996. London, New York: Routledge, 1997

FEUCHTWANGER, Edgar, J. Bismarck. London: Routledge, 2002

HOBSBAWM, Eric, J. The age of empire: 1875 – 1914. London: Weidenfeld and Nicholson, 1987

JOLL, James. Europe since 1870: An international history. London: Penguin, 1990

KENNEDY, Paul, M. The rise and fall of the great powers: economic change and military conflict from 1500 – 2000. London: Fontana, 1989

MOMBAUER, Annika. The origins of the First World War: controversies and consensus. Harlow, Eng. New York: Longman, 2002

NICHOLSON, Harold. The Congress of Vienna: a study in Allied unity: 1812 – 1822. London: Methuen, 1961

ROBERTS, John, M. The new Penguin history of the world. London: Penguin, 2007

STEVENSON, David. 1914 – 1918: the history of the First World War. London: Allen Lane, 2004

STRACHAN, Hew. The First World War. London: Historical Association, 1993



[1] Harold Nicholson, The Congress of Vienna: a study in Allied unity: 1812 – 1822 (London: Methuen, 1961), pp. 57-59
[2] Barbara Bush, Imperialism, race and resistance: Africa and Britain, 1919 – 1945 (London: Routledge, 1999), pp. 257
[3]   Paul Kennedy, The rise and fall of the great powers: economic change and military conflict from 1500 to 2000 (London: Fontana, 1989), pp. 258-59
[4] Erich Hobsbawm, The age of empire: 1875 – 1914 (London: Weidenfeld and Nicholson, 1987)pp.318-20
[5] Hans Ulrich Wehler,  The German Empire, 1871 – 1918 (Leamington Spa: Berg, 1985), pp.200
[6] Hew Strachan, The First World War (London: Historical Association, 1993), pp.6-8
[7]   Stephen Cimbala, Military persuasion: deterrence and provocation in crisis and war (University Park PA: Pennsylvania State University Press, 1994 ),pp.66-8
[8] David Copeland, The origins of major war (Ithaca: Cornell University Press, 2000) , pp.56
[9] David Stevenson, 1914 – 1918: the history of the First World War (London: Allen Lane, 2004), pp.17
[10] Eric Hobsbawm, The age of empire: 1875 – 1914 (London: Weidenfeld and Nicholson, 1987), pp.323

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