A Alemanha e as causas da Primeira Guerra Mundial: Foi
ela a única responsável?
Até a conclusão
do processo de Unificação Alemã em 1871, os diversos Estados alemães espalhados
pela Europa Central ocupavam uma posição relativamente marginal nos assuntos
políticos europeus. Com a notável exceção da Prússia, que desempenhava um papel
significante no continente já em fins do século 18, os Estados alemães
permaneceram nas margens do jogo político europeu até a segunda metade do
século 19. A Prússia conquistara o status de grande potência após derrotar o
Império Habsburgo e, em 1815, apresentava-se no Congresso de Viena como um dos
Quatro Grandes, ao lado da Áustria, Grã-Bretanha e Rússia – A França retornaria
à elite europeia alguns anos mais tarde. Na mesma época, o nacionalismo alemão
começava a ganhar força, dando origem a diversos movimentos pela Unificação
alemã. Contudo, tal unificação se tornaria uma possibilidade real apenas após a
Guerra Austro-Prussiana de 1866, quando a derrotada Áustria foi permanentemente
excluída dos assuntos alemães e deixou o caminho livre para a Prússia levar
adiante o processo de unificação sob sua liderança.
Em 1870, tem
início o conflito entre a Prússia e o Segundo Império Francês de Napoleão III,
do qual o primeiro sai vitorioso no ano seguinte, completando, assim, a
Unificação Alemã. Desse modo, nasce o Império Alemão (II Reich), já como
potência hegemônica no continente, enquanto a Grã-Bretanha mantém o domínio dos
mares e condição de maior potência imperial. Apesar de a Grã-Bretanha ter
mantido sua posição na arquitetura de poder europeia, os britânicos viam a
ascensão alemã com bastante preocupação, uma vez que ela ameaçava derrubar o
equilíbrio de poder estabelecido em 1815. Desde o Congresso de Viena a peça
chave da estratégia britânica na Europa havia sido a prevenção do surgimento de
uma potência dominante no continente[1],
e a ascensão da Alemanha como claro hegemon continental colocava em xeque o
sistema defendido por Londres. A quebra do equilíbrio de poder, por seu turno,
deu origem a um período de desconfiança generalizada que terminou por levar a
uma corrida armamentista entre as grandes potências europeias. Assim, as
últimas décadas do século 19 na Europa foram marcadas por um clima de
desconfiança e intensa militarização, embora a hábil diplomacia de Bismarck
lograsse evitar que o pior acontecesse.
A situação
mundial no início do século 20 tinha como principal traço o avanço do
imperialismo. Os Estados Unidos expandiam pelo Caribe e Pacífico, controlando
Cuba e as Filipinas, respectivamente; o Japão anexara Taiwan (Formosa) em 1895
e cada vez mais aumentava sua presença na península coreana; a Ásia e a África
encontravam-se em vias de dominação pelas potências europeias. No caso da
África, é notável o fato de que apenas a Etiópia e a Libéria continuavam
independentes no início do século[2].
Até certo ponto, o crescimento da rivalidade anglo-germânica a partir da década
de 1880 deveu-se ao aumento das pretensões hegemônicas da Alemanha. Se os
britânicos já tinham motivos para se preocupar com a unificação dos Estados
alemães, uma Alemanha unificada com ambições expansionistas agravava a questão
ainda mais, sobretudo porque, no campo econômico, ela já começava a superar a
grande potência marítima[3].
Mas se uma guerra
generalizada parecia inevitável após a Unificação Alemã, ela fora evitada
graças em grande parte ao eficaz estadista prussiano Otto Von Bismarck. O
chanceler habilidosamente perseguiu uma política exterior que obteve êxito em
seu objetivo de evitar uma guerra europeia: fundou a Liga dos Três Imperadores
juntamente com a Áustria e a Rússia, já em 1872; Assinou o Tratado de Resseguro
com a Rússia, em 1887; formou uma aliança defensiva com o Império Austríaco em
1889, à qual aderiu a Itália em 1892. Tais medidas foram tomadas ao mesmo tempo
em que se evitou alienar a Grã-Bretanha ao defender continuamente a manutenção
do status quo, o que, na prática,
significava que a Alemanha não desafiaria a posição britânica na Europa e no
mundo. Simultaneamente, Bismarck se opôs a qualquer envolvimento alemão nos
Bálcãs, onde o crescente nacionalismo eslavo, sobrepostos interesses das
grandes potências e desintegração do Império Otomano faziam da região o ‘barril
de pólvora’ da
Europa. Deste modo, Bismarck logrou assegurar a paz entre
a Alemanha e todas as potências europeias ao mesmo tempo em que isolou a
França, principal inimigo em potencial da Alemanha, diminuindo, assim, a
possibilidade de um conflito, visto que as chances de os franceses agirem
sozinhos eram remotas. Todavia, a demissão de Bismarck em 1890 tornou incerto o
futuro das relações europeias, a começar pela recusa do novo governo em renovar
o Tratado de Resseguro com a Rússia, cuja oportunidade não foi ignorada pela
França, que formou uma aliança militar com aquela já em 1893.
Mas seria
realmente correto atribuir unicamente à Alemanha a responsabilidade pelo início
da Primeira Guerra Mundial? A princípio, essa hipótese parece razoável, afinal,
os sucessores de Bismarck mostraram-se altamente incompetentes e o próprio
Kaiser buscou uma política externa bastante questionável após a demissão do
chanceler. Parece evidente que a política externa alemã pós-1890 contribuiu
consideravelmente para que a Grande Guerra estourasse em 1914, ainda mais
quando se leva em conta que Berlim tomou uma posição cada vez mais
intransigente e agressiva em relação a outras potências como França,
Grã-Bretanha e Rússia, ao mesmo tempo em que passou a se envolver ativamente na
Questão Balcânica[4]. Entretanto, considerando que a situação geopolítica
europeia nos primeiros anos do século 20 era demasiadamente complexa e que
havia inúmeros interesses em disputa, parece também um tanto quanto simplista
atribuir toda a culpa à Alemanha e à sua política externa. Existe uma série de
fatores que precisa ser levada em conta ao se analisar a geopolítica da Europa
durante os anos que antecederam a guerra em 1914.
Uma vez potência
dominante no sudeste europeu e no Mediterrâneo oriental, o Império Otomano
via-se em franco declínio já na segunda metade do século 19, o que criava um
vazio de poder que as potências europeias desejavam preencher. Nesse contexto,
Áustria e Rússia eram as partes mais interessadas, mas França, Grã-Bretanha e
Itália também possuíam interesses substanciais. Como mencionado acima, durante
a Era Bismarck a Alemanha mantivera-se fora do jogo político nos Bálcãs, já que
o chanceler reconhecia o perigo e a futilidade de um possível envolvimento
alemão na problemática região. Após 1890, contudo, a Alemanha passou a
desempenhar um papel cada vez maior nas questões balcânicas, ao passo que o
nacionalismo eslavo crescia rapidamente entre as populações sob domínio
otomano. A tensão e a instabilidade política da região eram tão grandes que ela
mereceu a alcunha de ‘barril de pólvoras’ da Europa, um título pertinente, como
a história se encarregaria de mostrar.
O estado de
coisas nos Bálcãs pioraria ainda mais em 1908, quando a Áustria anexou
oficialmente a Bósnia e Herzegóvina como parte da intensificação de sua
política expansionista na região. Esta, por sua vez, foi recebida com apoio e
simpatia em Berlim[5]. O declínio do Império Otomano se tornaria ainda mais
evidente em 1912, quando, incentivados pela Rússia, o grupo de nações formado
por Bulgária, Croácia, Grécia e Sérvia atacou a potência decadente e expulsou
os otomanos de quase todo o sudeste da Europa. A Sérvia, tendo saído do
conflito fortalecida, passou a ser vista pela Áustria como principal obstáculo
a suas pretensões nos Bálcãs. Por seu turno, a Sérvia contava com o apoio da
Rússia, que havia se aliado à França e Grã-Bretanha. Com a anexação formal da Bósnia
pela Áustria, o sentimento anti-austríaco se acentuou entre os eslavos da
região, que contavam com o apoio de Belgrado – que passara a financiar
atividades anti-austríacas na Bósnia[6]. Destarte, em meio a diversos interesses conflitantes
entre as grandes potências, uma ampla rede de alianças e de tratados de defesa
mútua, crescente nacionalismo eslavo e intensa corrida armamentista, o cenário
estava pronto para o barril de pólvoras da Europa explodir.
Mas até que ponto
a Alemanha foi responsável pelo início do conflito? É fato amplamente conhecido
que o acontecimento imediato que desencadeou as hostilidades foi o assassinato
do arquiduque austríaco, Franz Ferdinand (Francisco Ferdinando), por um
nacionalista sérvio em Sarajevo, capital da Bósnia. Tal assassinato levou a
Europa a uma profunda crise diplomática conhecida como Crise de Julho, ainda
que, ironicamente, Viena visse no episódio um perfeito pretexto para atacar a
Sérvia e destruir sua capacidade de resistir a expansão austríaca nos Bálcãs[7].
Nesse ponto, não seria exagero atribuir à Áustria alguma parcela de
responsabilidade pelo início da guerra, já que ela agiu de forma temerária e
não buscou uma solução pacífica para o problema, agindo com intransigência e
dando preferência a uma solução militar. Não obstante, também é verdade que por
trás dessa vontade austríaca de tirar proveito da situação para avançar seus
interesses regionais estava a certeza do apoio alemão, manifestado inúmeras
vezes pelo governo de Berlim. A Áustria sozinha seria incapaz de derrotar a
Sérvia e sua aliada Rússia em um eventual conflito, e tal fato era de
conhecimento de todos, inclusive da própria Áustria. Se Viena deu preferência
para uma opção militar do início ao fim da crise, era porque contava com o
total apoio da Alemanha. Por essa óptica, não restam dúvidas de que a Alemanha
teve um papel fundamental do desenrolar dos acontecimentos que levaram ao
início da guerra. Além disso, o fato de a ideia de um ataque preventivo ter
sido tão popular na Alemanha aponta para a direção de que não só Berlim
encorajou Viena a lançar mão às armas como também pretendia avançar seus
próprios interesses contra a Rússia pela força[8].
De acordo com
seus planos, o governo austríaco apresentou um ultimato à Sérvia com exigências
tão severas que levariam Belgrado a não acatá-lo. Para a surpresa dos
austríacos, o governo sérvio aceitou todas as condições contidas no ultimato
com exceção de uma que daria livre acesso e liberdade de ação à polícia
austríaca em território sérvio[9].
Porém, não fazia diferença que apenas uma de uma série de condições fosse
rejeitada, o que importava era que ela fosse rejeitada, dando, assim, o
desejado pretexto de lançar uma invasão militar à Sérvia. Esse apoio
incondicional alemão a uma ação militar austríaca é a principal razão apontada
para que a Alemanha seja usualmente considerada a principal responsável pela
Grande Guerra. Contudo, ainda que seja inegável que Berlim tenha exercido um
papel central no desencadeamento da guerra, e igualmente inegável que estava na
posição de evitar que a Áustria declarasse guerra à Sérvia, é um equívoco
atribuir a responsabilidade pelo conflito somente à Alemanha, como fez o
Tratado de Versalhes.
Como vimos, o
cenário político europeu no início do século 20 estava longe de ser estável e
todas as grandes potências viam um conflito militar de forma mais ou menos
favorável, uma vez que o entendiam como um obstáculo inevitável na busca de
seus respectivos interesses. A Grã-Bretanha desejava conter o espetacular
crescimento econômico e militar alemão, a França nunca havia esquecido a
humilhante derrota de 1871 e a questão da Alsácia- Lorena se tornara uma
obsessão nacional, enquanto a Rússia possuía interesses primordiais nos Bálcãs
e ansiava por ver a região livre da influência e presença austríacas, tendo
acelerado sua militarização a partir de 1912 e declarado apoio incondicional à
Sérvia durante a Crise de Julho. No caso da Rússia, ao contrário do que
geralmente se pensa, o país estava pronto para a guerra em 1914 como resultado
de anos de militarização[10]
e, assim como as principais potências europeias, não era desprovida de
interesses no que diz respeito a uma possível guerra.
Conclusão
A Primeira Guerra
Mundial não deve ser vista como um único, isolado evento, mas como a culminação
de um longo processo iniciado em 1871. Com a Unificação Alemã, o equilíbrio de
poder que se tornara o pilar da ordem europeia tornou-se por demais frágil com
a ascensão de uma potência continental hegemônica. Ao mesmo tempo, criou-se um
forte sentimento anti-alemão entre os franceses, que passaram a ter na vingança
contra a Alemanha uma importante política de Estado, enquanto os britânicos
temiam um possível desafio à sua predominância por parte dos alemães. Tais
tensões e desconfianças foram contornadas, ainda que temporariamente, pela
habilidade do estadista Bismarck. Sua demissão do cargo de chanceler, no
entanto, deixou o caminho livre para políticos menos hábeis e mais
aventureiros, o que levou a Alemanha a construir sua própria agenda imperialista
e a desafiar a supremacia naval britânica. Quando o arquiduque austríaco foi
assassinado em 1914, o cenário já estava mais do que pronto para um conflito
militar generalizado entre as grandes potências europeias.
Talvez a corrente
historiográfica majoritária culpe a Alemanha pelo início do conflito justamente
pelo fato de ela tê-lo buscado, tanto antes quanto depois da morte de Franz
Ferdinand. Como única potência com o poder e a influência de impedir que a
Áustria atacasse a Sérvia, a Alemanha terminou por ser inteiramente
responsabilizada pela guerra, enquanto a própria Áustria, estranhamente, foi
isentada de tal culpabilidade. Parece mais correto e objetivo enxergar a
Primeira Guerra Mundial como o resultado de uma série de eventos históricos, políticos,
sociais, econômicos e diplomáticos que por fim tornaram a guerra inevitável,
ainda que nenhuma das grandes potências acreditasse que ela tomaria proporções
continentais e globais. Tendo a Primeira Guerra Mundial ocorrido em um cenário
geopolítico bastante complexo que se desenvolvia há mais de quatro décadas, não
há como atribuir somente à Alemanha a responsabilidade por ela, ainda que sua
parcela seja consideravelmente grande. Não há como responsabilizar apenas um
país por um conflito que foi o resultado de um processo histórico moldado ao
longo de décadas.
REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA
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[3] Paul Kennedy, The rise and fall of the great powers: economic change and military
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[4] Erich Hobsbawm, The age of empire: 1875 – 1914 (London: Weidenfeld
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[6] Hew Strachan, The First World War (London: Historical
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[7] Stephen Cimbala, Military persuasion: deterrence and provocation in crisis and war
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[9] David Stevenson, 1914 – 1918: the history of the First World
War (London: Allen Lane, 2004), pp.17
[10] Eric Hobsbawm, The age of empire: 1875 – 1914 (London:
Weidenfeld and Nicholson, 1987), pp.323
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